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Vida de Impacto: O Legado de Uma Mãe

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Dr. Paul Brand (1914- 2003) foi médico, autor e missionário, e dedicou grande parte de sua vida para cuidar de leprosos da índia e descobrir soluções para restaurá-los como membros dignos da sociedade. Veja resumo biográfico na Revista Impacto, edição n° 32.

Um privilégio especial que tive ao trabalhar junto com leprosos foi a oportunidade de conhecer muitas pessoas realmente admiráveis, pessoas que fizeram a escolha de se dedicar para que a vida destes pacientes tão sofredores pudesse ter verdadeiro valor. Uma característica destes heróis abnegados era que cada um parecia ter um reservatório de alegria e um senso de realização que superava em muito qualquer coisa que pudesse ter sacrificado.

Isto, eu suponho, não deveria me surpreender, já que apenas reforçava uma das primeiras lições que aprendi com meus pais. Minha mãe, em especial, me deixou um profundo legado, um que levei alguns anos para reconhecer e valorizar plenamente.

Descobrindo as Origens da Minha Mãe

Vivi com meus pais durante nove felizes anos na índia, antes de partir para a Inglaterra para estudar. Lá fiquei com duas tias num casarão em um subúrbio de Londres, no mesmo local onde minha mãe fora criada, no tempo em que era uma imponente sede de propriedade rural. A família Harris era muito próspera e a casa ainda preservava numerosos lembretes do estilo de vida que minha mãe, Evelyn, levava naquele tempo antes de se tornar missionária. Era toda mobiliada em mogno e os armários estavam lotados de preciosíssimas relíquias e antigüidades.

Minhas tias me contaram como a mamãe gostava de se vestir com certa exuberância, e até me mostraram algumas de suas roupas de seda, seus rendados e os chapéus de longas plumas ainda pendurados nos armários. Ela havia estudado na Escola de Artes em Madeira de St. John, e vi algumas de suas pinturas em aquarela e tintas a óleo. Havia pinturas dela, também; segundo as tias, seus colegas competiam entre si pelo privilégio de pintar a bela Evelyn. “Parece mais atriz do que missionária”, comentavam na sua festa de despedida, na véspera da viagem para a índia.

Quando ela voltou para a Inglaterra, porém, depois que meu pai morreu de malária com 44 anos, era uma mulher quebrada, abatida por dor e tristeza. Seria possível que aquela mulher encurvada e emaciada, desembarcando do navio, fosse minha mãe? Lembro de ter feito uma tola promessa de adolescente para mim mesmo, naquela ocasião, tamanho era o choque de ver sua transformação: se é isto que acontece quando se ama, então nunca amarei como ela amou meu pai.

Recomeçando Sozinha

Depois de um ano, contrariando todos os conselhos de amigos e familiares, minha mãe voltou para a índia, e lá na Serra da Morte, sua alma foi restaurada. Derramando sua vida para servir ao povo das montanhas, ela cuidava dos doentes, ensinava técnicas de plantio, dava aulas sobre saúde e os perigos das verminoses, criava órfãos, desmatava terrenos, arrancava dentes, estabelecia escolas, furava poços, pregava o evangelho. Enquanto eu morava na mansão de sua infância, ela estava do outro lado do mundo, num rancho portátil de bambu e palha. Quando viajava de vila em vila, dormia num reduzido abrigo de mosquiteiro, sem qualquer proteção dos elementos da natureza (durante as tempestades à noite, embrulhava-se numa capa e abria uma sombrinha sobre sua cabeça).

Mamãe tinha sessenta e sete anos quando fui pela primeira vez para a índia como cirurgião. Meu local de trabalho ficava a uns cento e sessenta quilômetros da sua casa, mas a viagem para chegar lá na serra levava vinte e quatro horas. Seus anos de labores naquelas montanhas a haviam desgastado. Sua pele tinha sido castigada pela intempérie, seu corpo infestado com malária, e andava com dificuldade. Ela tinha quebrado um braço e trincado várias vértebras quando foi jogada no chão por um cavalo. Pensei que logo resolveria se aposentar.

Como estava errado! Com a idade de setenta e cinco anos, ainda trabalhando nas montanhas, minha mãe caiu e quebrou a bacia. Ficou deitada a noite toda no chão em dor, até que um trabalhador a encontrasse na manhã seguinte. Quatro homens a levaram numa maca de madeira e barbante pelo trilho das montanhas até chegar na baixada, onde a colocaram num jipe para fazer a agonizante viagem de 160 km por estradas esburacadas.

Apelo do Filho

Eu não estava no país quando o acidente ocorreu, mas assim que voltei programei uma viagem com o propósito declarado de persuadi-la a se aposentar. Eu sabia o que provocara o acidente. Pressão nas raízes nervosas na região das vértebras quebradas fizera com que ela perdesse um pouco de controle sobre os músculos abaixo dos joelhos. Mancando, e com uma tendência de arrastar os pés, ela havia tropeçado na soleira de uma porta, enquanto carregava uma jarra de leite e uma lamparina de querosene.

“Mamãe, a senhora teve sorte de ser encontrada por alguém no dia seguinte”, iniciei meu discurso ensaiado.

“A senhora poderia ter ficado ali incapacitada durante vários dias. A senhora não deveria pensar em se aposentar?”

Como ela não respondeu, aproveitei a oportunidade para reforçar minha tese com mais argumentos. “Seu senso de equilíbrio não está mais funcionando tão bem, e suas pernas estão falhando cada vez mais. Simplesmente não é seguro para a senhora viver neste lugar sozinha, onde os recursos médicos mais próximos estão a pelo menos um dia de viagem daqui. Pense nisto. Só nestes últimos anos, a senhora teve fraturas de vértebras e costelas, uma concussão cerebral e uma infecção séria na mão. Com certeza, a senhora concorda que até as melhores pessoas podem se aposentar antes de chegar aos oitenta anos. Por que não vem a Vellore para morar comigo? Temos bastante trabalho para fazer e a senhora estará muito mais próxima a assistência médica. Cuidaremos da senhora, mamãe.”

Meus argumentos eram absolutamente convincentes – para mim, pelo menos. Porém, minha mãe não se comoveu, nem um pouquinho.

“Paul”, ela disse finalmente, “você conhece esta região. Se eu for embora, quem ajudará o povo dos vilarejos? Quem tratará das suas feridas, arrancará seus dentes e lhes ensinará sobre Jesus? Quando alguém vier para tomar meu lugar, neste dia e somente neste dia poderei me aposentar. De qualquer forma, o que adianta preservar este velho corpo se não será útil no lugar onde Deus precisa de mim?”

Aquela foi sua resposta final, uma decisão que manteve até sua morte com noventa e cinco anos, ainda trabalhando ativamente, época em que alguns de seus obreiros indianos já haviam assumido responsabilidade pelo seu trabalho.

Elogio de um Filho

Para minha mãe, a dor era uma constante companheira. O sacrifício também era. Digo isso com muito carinho e amor: na sua velhice, mamãe tinha muito pouca beleza física. As condições adversas, combinadas com quedas paralisantes e batalhas constantes com tifóide, disenteria e malária, a transformaram numa mulher velha, emaciada e corcunda. Anos de exposição ao vento e ao sol enrijeceram sua pele e a transformaram em couro; escavaram nela rugas tão profundas e extensas como jamais vi numa face humana. A Eve lyn Harris das roupas chiques e perfil clássico era uma vaga lembrança do passado. Mamãe sabia disso tão bem quanto os outros – tanto assim que durante os últimos vinte anos de sua vida, recusava-se a guardar um espelho em sua casa.

Mesmo assim, com toda a objetividade que um filho pode reunir, posso verdadeiramente dizer que Evelyn Harris Brand era uma linda mulher até o fim dos seus dias. Uma das mais fortes memórias visuais que guardo é de uma ocasião quando estive com ela numa vila nas montanhas, possivelmente a última vez que a vi no seu ambiente predileto. Ao se aproximar do lugar, o povo havia se apressado para recebê-la,     tomando suas muletas e carregando-a a um lugar de honra. Posso vê-la sentada numa mureta de pedra que circundava a vila, apertada por gente de todos os lados. Ela acabara de elogiar os aldeões por terem protegido suas fontes de água e pelo pomar de árvores frutíferas que florescia nos arredores. Estava falando agora sobre o amor de Deus. Cabeças balançavam em assentimento e perguntas profundas de corações sedentos vinham da multidão. Os olhos da mamãe estavam luminosos e, em pé ao lado dela, eu contemplava o que sua visão enfraquecida devia estar vislumbrando confiança e afeto para esta pessoa que aprenderam a amar e valorizar.

Nesse momento, percebi que nenhuma outra pessoa no mundo conseguiria inspirar tamanha devoção e amor naquele povo. Estavam olhando para um rosto envelhecido, ossudo e enrugado, mas de algum modo, seus tecidos encolhidos haviam se tornado transparentes e seu espírito reluzia fortemente do seu interior. Para aquele povo e para mim, esta mulher era literalmente deslumbrante. Vovó Brand não usava mais um espelho de vidro ou de cromo polido para se arrumar; contudo, ao olhar para aquela multidão, via seu próprio reflexo nos rostos incandescentes ao seu redor.

Poucos anos depois daquela cena, minha mãe faleceu. A seu próprio pedido, os aldeões a sepultaram sem caixão, num simples lençol de algodão, para que não se desperdiçasse madeira e para que seu corpo pudesse voltar ao solo e nutrir nova vida. Seu espírito, também, continua vivo – através de uma igreja, diversas escolas e nos rostos de milhares de camponeses espalhados em cinco regiões serranas no sul da índia.

Um co-obreiro que conhecia bem minha mãe comentou certa vez que a Vovó Brand era mais viva do que qualquer pessoa que tinha conhecido. Através de abrir mão da própria vida, ela a encontrou. A dor, ela conhecia muito bem. Mas a dor não precisa destruir. Pode ser transformada – uma lição que aprendi com minha mãe e que nunca mais esqueci.

Extraído do livro Pain: The Gift Nobody Wants (“Dor: O Presente que Ninguém Quer”), por Dr. Paul Brand e Philip Yancey, Zondervan/Harper Collins, 1993.

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