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Teologia Viva

Por Pedro Arruda

Coração para aprender a ouvir o que Deus quer falar e falar o que Deus quer ouvir

Estamos tão acostumados à maneira acadêmica de se fazer teologia que nem imaginamos outra possibilidade. Evidentemente, a maneira de ser da igreja corresponde à forma de se fazer teologia. Poderíamos até dizer que a teologia é a cabeça que pensa, e a igreja é o corpo que executa esse pensamento e retroalimenta a teologia. É uma ligação de interdependência e mútua alimentação na qual a igreja sistematizada produz teologia também sistematizada – e vice-versa, pois ambas fazem parte de um mesmo sistema.

Jesus alertou para a necessidade de coerência etária entre odres e vinhos (Mt 9.17). Dentre várias outras analogias, podemos dizer que os odres representam a teologia, e o vinho, a igreja. Seguindo o raciocínio de Jesus, não podemos esperar que uma igreja não sistêmica surja de uma teologia sistematizada. Se repetimos sempre a mesma experiência, é tolice esperarmos resultado diferente.

É oportuno comparar a postura de Jesus com a dos teólogos de seus dias e verificar qual delas mais se assemelha à nossa produção teológica atual.

Se observarmos a forma, Jesus nada escreveu, enquanto eles produziram imensos compêndios, fazendo da escrita uma ferramenta básica para a sistematização e a consolidação das tradições. Tinham escolas mais formais, enquanto Jesus perambulava livremente com seus discípulos. Eram rigorosos quanto às ações em contraste a Jesus, que atentava para a atitude do coração. Eles valorizavam o saber mental, mas Jesus ressaltava a condição do coração. Segundo Jesus, com seu excessivo rigor com a lei, eles a colocaram acima de Deus e se fizeram filhos do diabo, pois pretendiam matar o Enviado de Deus com base na interpretação que davam à lei.

Como observador, parece-me que a maneira de se fazer teologia no cristianismo migrou do modelo de Jesus para o de seus opositores.

Teologia baseada na iniciativa de Deus

Uma diferença básica entre o cristianismo proposto por Jesus e as demais religiões está na definição de quem toma a iniciativa no relacionamento entre Deus e o homem. Cada religião se caracteriza pela proposta particular que apresenta para que o homem chegue a Deus. Umas acham que deve ser por meio de sacrifícios diversos; outras, por muito estudo. Umas ensinam formas específicas de meditação, enquanto outras, uma vida rigorosamente disciplinada por exercícios espirituais. Daí vem o ditado: “todos os caminhos (religiões) levam a Deus”, pois essa é a intenção de todas. Elas se tornaram objeto de estudo a ponto de se constituírem numa área de formação reconhecida pela academia. Quando se insere o cristianismo nesse mesmo conjunto, ele se torna apenas mais uma religião a disputar espaço entre as demais.

Contudo, se compreendemos que é Deus quem toma a iniciativa do relacionamento, outros valores emergem com importância vital – dentre os quais, a revelação. Era a isso que Jesus se referia quando disse numa oração: “Ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos [simples]” (Mt 11.25). A própria encarnação foi uma demonstração disso, pois, enquanto os intelectuais da religião sabiam pelas profecias o endereço do nascimento de Jesus, não se propuseram ir até Belém para vê-lo.

Por outro lado, tudo aconteceu com a ciência de um simples sacerdote e sua esposa estéril, de moradores das montanhas da Judeia e de uma adolescente camponesa com seu esposo carpinteiro. Um devoto ancião e uma viúva profetisa que frequentavam o templo perceberam quem era a criança recém-nascida, enquanto o sacerdote que realizava a circuncisão não reconheceu o Messias de Israel. Por revelação de Deus, até mesmo os pastores do campo e os magos gentios foram agraciados pela boa notícia. Em contraste com esses simples de coração, os teólogos da época (sacerdotes, escribas e doutores da lei) consideravam a fé uma questão meramente intelectual, sem relação com a prática de vida.

Sendo Deus aquele que toma a iniciativa no verdadeiro relacionamento com o homem, todo mérito e glória pertencem, de fato, ao Senhor. Se aplicarmos esse mesmo princípio à oração, passaremos a vê-la como um diálogo no qual Deus formula a pauta do assunto e fala primeiro, deixando para o homem a função de responder. A comunicação viva é Deus revelando-se ao homem por meio de sua palavra, que é a peça essencial da comunhão. Dessa forma, oração e palavra são indissociáveis, pois caracterizam o diálogo de Deus com o homem por iniciativa divina. Não há de se falar em teologia viva sem admitir a iniciativa de Deus em revelar-se ao homem – um tanto diferente da teologia que é fruto de pesquisa acadêmica aplicada à Bíblia.

Teologia do homem integral

Outrora, a vida do homem se dava totalmente em torno da família. O filho crescia sob os cuidados da mãe, que lhe ensinava as primeiras lições. Em seguida, o pai o profissionalizava enquanto trabalhavam juntos. Finalmente, o pai e a mãe participavam da escolha do cônjuge. Tudo acontecia dentro do mesmo ambiente familiar. Foi nesse contexto que a igreja surgiu. Ela fazia parte da vida da família que acolhia o evangelho. A igreja se inseria na família, mudando sua rotina e estilo de vida, mas não pinçava um de seus membros para fazer algo fora de seu ambiente. Sabia-se que havia igreja em determinada localidade por causa do estilo de vida de certas famílias que ali viviam, não pela existência de um templo no centro da cidade.

Contudo, no transcorrer da história, a vida do homem foi-se segmentando mais intensamente, e este passou a exercer vários papéis cada vez mais distintos. Atualmente, a mãe delega, desde muito cedo, uma parte dos primeiros cuidados com o filho a uma babá profissional, que pode ficar mais tempo com a criança do que a própria mãe. Logo, vêm a creche e a escola, depois outros cursos e atividades paralelas. Com isso, a criança, desde cedo, aprende seu papel de filho, o de objeto de cuidado da babá, o de aluno na escola, o de estudante de música, o de aprendiz de atleta, e, se cristão, o de membro de igreja.

Como cada coisa acontece em ambiente diferente, ela aprende também a ser uma pessoa diferente em cada ocasião, como se fosse dividida em várias personalidades. Mais tarde ainda, vai ouvir que não pode levar os problemas de casa para o emprego e vice-versa, obrigando-se a constantes catarses. Dessa forma, a pessoa é um pai de família e marido em casa, um executivo no trabalho, um atleta nas horas de lazer, um estudante de MBA à noite, um religioso aos domingos. Tudo rigorosamente compartimentado, com cada coisa em seu tempo e lugar, o que requer constante esforço para mantê-las isoladas, para que uma não interfira na outra. Com isso, o homem se divide, deixa de ser integral, e cada aspecto da vida tem suas próprias regras, ética e prática de fé.

Além da psicologia e outras ciências, a teologia convencional parece ter embarcado nessa também, apoiando o homem quer na busca de ser bem-sucedido na vida profissional, quer na troca de cônjuge se for necessário, desde que se mantenha frequente nas atividades da igreja; sobretudo, com sua contribuição financeira. Daí termos uma sociedade cujos valores não correspondem ao crescimento quantitativo dos frequentadores de igreja ou dos que se declaram cristãos e consomem seus respectivos produtos. Assim como cresce o mercado gospel, especialmente fonográfico com a venda de CDs e programas televisivos, também cresce o número de abortos, de separação de casais e casamentos entre divorciados.

Nessa mesma área de segmentação do homem, outro prejuízo é admitir o conhecimento teórico desassociado da prática e ainda imaginar que a atividade mental seja mais nobre que a operacional. Isso abre possibilidade a argumentos que valorizam a aparência. Tempos atrás, valorizava-se o ser; depois, o ter passou a ocupar a posição mais importante, e, finalmente, na pós-modernidade, encharcada de valores virtuais, o importante é parecer ser e parecer ter.

Precisamos de uma teologia que entenda o homem como ser integral, que veio a este mundo para ser feliz sem, contudo, ter a busca da felicidade como seu alvo, mas o desfrutá-la como consequência de uma vida em conformidade com a missão que Deus lhe designou. Que não julgue as funções eclesiásticas mais nobres que as tidas como seculares, apenas por serem religiosas, mas que considere o mais importante estar a serviço exclusivamente de Deus na função para a qual foi por ele chamado (o que não implica, necessariamente, uma profissão religiosa). Que não considere o dinheiro do dízimo mais abençoado do que o restante que ficou em poder do ofertante. Que não admita ser menos santo nos outros seis dias do que no domingo, ou menos espiritual em outros locais do que no templo.

Se considerarmos como perdido alguém que não sabe de onde veio, onde está ou para onde vai, ou seja, que desconhece o caminho, o redimido, em contraposição, deveria ser aquele que tem senso de localização existencial e convicção do caminho a seguir. Logo, todo nascido de novo deveria saber a sua vocação, isto é, para que Deus o enviou a esta vida. Assim, seguiria seu chamado com a convicção de estar totalmente em conformidade com a vontade de Deus, sem uma ponta de frustração imaginando que poderia fazer melhor se fosse um missionário ao invés de exercer uma profissão considerada secular. O encontro da vocação não deveria ser uma experiência mais elevada reservada apenas para os mais consagrados. A própria conversão deveria também significar o encontro da vocação, uma vez que a pessoa deixou de ser um perdido existencial.

Quando se considera o homem como integral, não se abre espaço para uma divisão entre clérigos vocacionados e leigos seculares, como se houvesse cristãos de primeira e de segunda categoria. Dessa forma, fazer teologia é uma atividade para o homem integral, independente de sua condição de clérigo ou de leigo.

Teologia comunitária

Precisamos de uma teologia comunitária. Diferentemente de outras disciplinas acadêmicas que admitem uma produção pessoal e individual, a teologia como resultado da convivência simultânea da teoria e da prática, implica necessariamente ser um produto coletivo, obtido pela comunhão junto à comunidade. Assim, não podemos imaginar como teólogo a figura de um intelectual debruçado sobre a Bíblia e muitos outros livros, pesquisando e produzindo sua nova tese. Por ter relação intrínseca com a vida, a teologia segue o dinamismo de tempo e espaço sem se descolar de seus fundamentos porque se baseia num intenso relacionamento com Deus. Algo que nos remete a isso na Bíblia é a igreja de Jerusalém vivendo unânime em torno da doutrina dos apóstolos, que ainda nem sequer estavam escrevendo os Atos dos Apóstolos.

Naquela igreja, a teologia era produto comunitário e refletia a unicidade entre palavra e oração. De um lado, ouviam e compreendiam a palavra de Deus e, do outro, respondiam em oração. Essa perfeita interação entre palavra e oração produzia comunhão. Estas, junto com o “partir do pão”, formavam os quatro elementos da unidade da igreja, e a teologia que produziam era o registro dessa experiência. Por isso, puderam firmar suas decisões como “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós…” (At 15.28). Isso, sim, é teologia de alto nível!

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