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Simplicidade e o Impacto da Igreja na Sociedade

Por Christopher Walker

Não é tarefa difícil encontrar na história da Igreja exemplos de pessoas que demonstraram um estilo de vida simples. Aliás, é difícil, senão quase impossível, pensar em alguma personagem que deixou uma forte marca na igreja e no mundo que não tenha, de alguma forma, andado na contramão dos costumes e práticas da sociedade de sua época. Num tempo em que as diferenças entre a igreja e a sociedade contemporânea estão quase desaparecendo e os cristãos são incentivados a buscar prosperidade material como evidência do favor de Deus, vale a pena refletir um pouco sobre a nossa linhagem histórica para ver como nossos irmãos do passado viviam neste mundo.

Modelos Individuais

Apenas para dar uma pequena amostragem do que a História nos oferece, veja os seguintes exemplos:

João Wesley (1703-1791) – fundador do metodismo. Quando era jovem, João Wesley calculou que vinte e oito libras por ano (cerca de 65 dólares) cobririam suas necessidades pessoais. Visto os preços permanecerem basicamente inalterados, ele conseguiu manter esse nível de gastos durante toda a sua vida. Na época em que tomou essa decisão, sua renda era de trinta libras por ano. Porém, com o passar do tempo, Wesley escreveu e publicou vários livros, a venda dos quais chegou a lhe render mil e quatrocentas libras por ano. Mesmo assim, ele continuou a viver com apenas vinte e oito libras, usando todo o excedente para doar a necessitados ou à obra de Deus! A simplicidade era seu “estilo de vida”!

Certa ocasião, ele disse à irmã que dinheiro nunca ficava com ele, pois se ficasse o queimaria. Ele dizia a todos que, se quando morresse tivesse consigo mais do que dez libras (cerca de vinte e três dólares), as pessoas teriam o privilégio de chamá-lo de ladrão. Quase no fim da vida, ele escreveu em seu diário muito simplesmente: “Não deixei dinheiro algum para ninguém em meu testamento porque não tinha nenhum”.

J. Hudson Taylor (1832-1905) – missionário à China, fundador da China Inland Mission (Missão para o Interior da China), que, antes de sua morte, havia levado mais de oitocentos missionários àquele país. Depois de sua chamada, enquanto se preparava para partir em sua missão, Taylor saiu de sua casa confortável e foi morar num bairro carente para trabalhar com um médico, aprendendo a suportar dificuldades e a economizar a fim de ajudar as pessoas necessitadas.

Disse ele: “Logo descobri que podia viver com muito menos do que antes achara possível. Manteiga, leite e outros luxos, deixei de usar, e descobri que, se vivesse principalmente de aveia e arroz, com variações ocasionais, bastava uma quantia muito pequena para as minhas necessidades”. Dessa forma, ele pôde usar dois terços de sua renda para outras finalidades. Escreveu ele: “Minha experiência foi que quanto menos eu gastasse comigo mesmo e quanto mais eu desse aos outros, mais cheia de felicidade e bênçãos minha alma se tornava.” Foi ali também que aprendeu a depender de Deus somente e a não falar com ninguém sobre suas necessidades, princípio que usou durante todo o seu ministério na China.

No campo missionário, logo assumiu uma postura totalmente diferente de outros missionários, que mantinham seu estilo de vida ocidental, viviam nas cidades grandes e não se misturavam com o povo humilde das vilas no interior. Embora fosse muito criticado pelos colegas missionários, adotou os costumes chineses da época, usava roupas iguais às deles e deixou seu cabelo crescer para usá-lo com tranças como os homens chineses faziam. O preço que pagou foi muito alto, pois perdeu vários filhos e sua primeira esposa, que morreu com 33 anos. Mas deixou um grande impacto naquele país e um testemunho que inspira cristãos no mundo inteiro até hoje.

Conde Zinzendorf (1700-1760) – fundador da comunidade dos morávios, origem do movimento missionário dos séculos XVIII e XIX. Membro da nobreza alemã, foi tocado por Deus ainda jovem. Ao ver um quadro de Cristo coroado de espinhos, com as palavras: “Tudo isto fiz por ti. O que fazes tu por mim?”, tomou a decisão de dedicar toda sua vida à causa de Jesus. Uma das primeiras coisas que fez foi oferecer suas terras para acolher cristãos perseguidos vindos de várias partes da Europa. Acabou deixando suas responsabilidades na corte para se dedicar totalmente a esse grupo fragmentado de cristãos briguentos e divisivos. O resultado foi um maravilhoso mover de Deus que uniu a comunidade e gerou missionários que saíram dali a diversas partes do mundo.

O Conde Zinzendorf foi o jovem rico que, ao contrário daquele no evangelho, disse sim a Jesus. Não é preciso ser pobre para levar uma vida simples. Zinzendorf usou seu patrimônio e seus recursos para a causa que consumia todo o seu ser. Seu lema era: “Tenho uma única paixão: Jesus, ele e somente ele”. Esta é a essência da simplicidade: ter um alvo único, em função do qual tudo é direcionado.

Para alcançar os membros de sua comunidade, Zinzendorf saiu de sua função “importante” na corte e mudou-se da mansão da propriedade para uma academia mais próxima às pessoas. Anos depois, foi exilado e chegou a passar necessidade, junto com sua família. Sua paixão por Cristo foi reproduzida, porém, em toda uma comunidade cujo lema era: “Conquistar para o Cordeiro que foi morto a recompensa dos seus sofrimentos”.

Testemunho Coletivo

Além desses exemplos individuais (tantos outros poderiam ser citados e merecem ser estudados, como Ambrósio, os Capadócios, Tereza e João de Ávila, George Müller, Henry Nouwen e outros) temos também na História movimentos inteiros que adotavam um estilo de vida contrário ao da sociedade da época. Os testemunhos individuais são importantes, porém nem sempre servem de modelo a todos porque podem representar chamados singulares ou diferentes. Nem todos, por exemplo, poderão ser um Francisco de Assis, que viveu totalmente fora do sistema de bens e possessões, ou um Rees Howells (veja revista Impacto, edição 41), que se dedicou à intercessão, levando uma vida de total abnegação e privando-se voluntariamente até de direitos e recursos básicos. Contudo, o testemunho coletivo tem outro impacto. Imaginem o que Deus pode fazer através de todo um povo andando na contramão no meio de uma sociedade escravizada pelo materialismo, pelo egoísmo e pela busca de prazer!

Como exemplos de movimentos que procuraram, com todas as suas imperfeições, viver uma vida alternativa, podemos citar as diversas ramificações dos anabatistas (menonitas, morávios e “irmãos livres” ou “brethren”), os metodistas das primeiras décadas e os quacres (ou Quakers).

Os anabatistas, por exemplo, criam que seguir a Jesus era uma decisão pessoal (impossível de ser feita pelos pais através do batismo de bebês) e que tinha conseqüências drásticas na vida prática. Criam também que o caminho do discipulado cristão não era uma jornada individual, mas que precisava ser tomada no contexto de uma comunidade de crentes. A partir desses fundamentos, surgiram vários tipos de práticas coletivas, de acordo com os diversos grupos e épocas, tendo em comum o não-conformismo com o mundo, o desejo de praticar de algum modo o reino que Jesus veio implantar.

Os Quacres

Depois dos menonitas e, especialmente, da ramificação conhecida como os amish (que ganhou um destaque especial depois de aparecer em filmes como A Testemunha, com Harrison Ford), um dos grupos mais conhecidos na história como protagonistas do estilo de vida simples é o dos quacres, ou Sociedade dos Amigos, como eles mesmos se chamavam originalmente.

O fundador desse movimento foi George Fox (1624-1691), um pregador radical na Inglaterra, cuja vida e testemunho raramente recebem tratamento adequado nos livros e cursos de História da Igreja. Depois de uma verdadeira experiência com Deus, Fox começou a anunciar a todos, cristãos nominais ou não, a mensagem revolucionária do cristianismo genuíno, tão oposta à religiosidade superficial das igrejas anglicanas oficiais. Entre outras coisas, ele afirmava que Cristo era uma realidade presente e atual, não apenas uma história registrada na Bíblia. Deus fala hoje à nossa situação e condição humana, através de Cristo, e sua presença pode ser sentida e experimentada por todos aqueles que realmente nascem de novo.

Logo, muitas pessoas sedentas por toda parte estavam abraçando a mensagem e procurando viver o “cristianismo primitivo”, como Fox o chamava. No desejo de serem fiéis à voz e à luz de Cristo, adotaram diversos princípios de vida, totalmente contrários às normas da sociedade da época, e por causa dos quais passaram a ser duramente perseguidos.

Alguns dos seus princípios podem parecer estranhos para nós hoje, como a insistência em não tirar o chapéu diante de autoridades humanas e o uso de pronomes arcaicos (como thou e thee, como se falássemos com as pessoas hoje usando tu e vós, em português). Tudo, porém, era conseqüência de convicções baseadas em princípios do ensinamento de Jesus, de não dar honras exageradas a figuras humanas e de tratar todos com igualdade.

No âmbito deste artigo, queremos nos limitar apenas à vida de simplicidade dos quacres. Na questão de vestimenta, o princípio era fugir de qualquer tipo de adorno considerado ostensivo, pomposo, frívolo, vaidoso ou indecente. Faziam questão de não mudar sua maneira de vestir para acompanhar as mudanças da moda. Depois de algum tempo, como geralmente acontece, passaram a adotar um estilo de vestimenta mais padronizado, sempre com tons de cinza, de tal forma que um quacre podia ser facilmente identificado (e geralmente desprezado) pelas roupas que usava.

A simplicidade, porém, embora muitas vezes associada pelos de fora com o estilo de roupa, era muito mais do que isso. Veja a seguir algumas citações que expressam as suas convicções e o que procuravam praticar nessa área:

• Procure viver com simplicidade. Um estilo de vida simples adotado por livre escolha é uma fonte de grande força. Não seja persuadido a comprar algo que não seja necessário ou que esteja além do seu orçamento. Você se mantém informado sobre o efeito que seu estilo de vida tem sobre a economia e o meio-ambiente global? (De “Advices and Queries” (Conselhos e Indagações), uma espécie de cartilha das convicções dos quacres.)

• Procuramos “viver com simplicidade para que outros possam simplesmente viver”. Isso nos permitirá doar mais para causas valiosas. Teríamos muita dificuldade para gastar dinheiro em roupas de grife ou refeições caras, sabendo que pessoas estão morrendo de fome em vários lugares do mundo. (De uma instituição de educação quacre contemporânea.)

• Simplicidade não diz respeito tanto ao que nós possuímos, mas ao que nos possui… Se nosso tempo, dinheiro e energia forem gastos em escolher, adquirir, manter; se nos ocuparmos em falar sobre nossas posses, então sobrará pouco tempo, dinheiro e energia para outras ocupações, tais como a obra que fazemos para levar adiante a Comunidade de Deus. (Charles Hadley Snyder, 1991.)

• As verdadeiras raízes da simplicidade não se encontram em economizar dinheiro ou evitar uma exibição de riqueza – por mais benéficas que sejam essas virtudes. Fundamentalmente, o testemunho de simplicidade é espiritual. Se o foco principal da vida for harmonizar tudo em torno das instigações que vêm da Luz Interior, então tudo que desvia atenção desse foco precisa ser podado. Tudo que é supérfluo ao objetivo principal da vida precisa ser removido, se quisermos alcançar plenamente nosso objetivo. (Quaker Strongholds, 110.)

O perigo nesta área é identificar a obediência a Cristo com alguns padrões exteriores de simplicidade. Como sabemos, isso acabou acontecendo em todos os grupos que começaram a viver um estilo de vida alternativo como resposta à voz do Espírito. Mantiveram as tradições, mesmo depois de perdida a luz interior. No entanto, o impacto do testemunho coletivo desses movimentos na sociedade através dos séculos é impossível de ser plenamente avaliado. Juntamente com outros fatores incluídos na sua maneira de viver, a vida honesta e simples de anabatistas, menonitas, metodistas e quacres, entre outros, afetou profundamente as sociedades da Inglaterra, Europa continental e Estados Unidos, em dimensões totalmente além dos seus números.

Ainda que hoje a maioria desses movimentos tenha perdido sua vitalidade interior, mantendo apenas a forma exterior dos costumes (e, outras vezes, nem isso), há muitos exemplos de pessoas contemporâneas que foram marcadas pelo testemunho das gerações passadas e que redescobriram a origem de suas convicções. Como exemplos, posso citar Richard Foster, conhecido autor e conferencista quacre (veja artigos dele na página 6 desta edição), e minha própria mãe, Ruth Walker, que foi criada num lar quacre e que passou para todos os seus filhos um modelo genuíno e verdadeiro de simplicidade cristã.

Deus ainda pode fazer grandes coisas através de pessoas que correspondam à sua voz e que tenham coragem de caminhar na direção contrária ao mundo em que vivem – e coisas maiores ainda quando seu povo fizer isso coletivamente!

Christopher Walker faz parte do Conselho Editorial da revista Impacto e reside em Americana, SP. E-mail: [email protected]

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