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Paz e Vigilância

Por Mateus Ferraz de Campos

Tornou-se muito comum, no meio cristão, o uso extensivo de analogias para melhor compreender as realidades do Reino de Deus e, especialmente, da Igreja de Cristo. Frequentemente, fazemos uso de ideias como a da família ou a do corpo humano para compreender a funcionalidade da igreja – e isso com base na própria Palavra de Deus que nos oferece tais instrumentos para facilitar a absorção de realidades tão profundas. Muito provavelmente, não conseguiríamos sobreviver sem tais analogias. Sem elas, os conceitos seriam abstratos demais.

Entretanto, não podemos esquecer que as analogias são tentativas de trazer certa concretude aos conceitos, mas, de forma alguma, têm a intenção de esgotar-lhes o significado. Em outras palavras, nenhuma analogia pode dizer absolutamente tudo a respeito de determinado assunto das Escrituras, já que essas verdades estão, na maioria das vezes, muito além de qualquer capacidade de compreensão humana. Assim sendo, corremos um sério risco ao absolutizar as analogias e vivermos em função delas.

“Batalha espiritual” define a vida cristã?

Falo sobre essa questão pensando em uma analogia em particular, a do exército. Parece-me que a ideia da igreja como um grande exército e o mundo como um grande campo de batalha tornou-se bastante popular em quase todos os ambientes onde se discute o papel da igreja. E, como toda analogia, essa traz consigo uma série de paralelos inquestionáveis. Basta observar as lutas que cada cristão passa quase diariamente para constatar que a batalha contra principados e potestades não é mera teoria ou figura de linguagem. Se estivermos envolvidos, de fato, com a causa de Cristo e de seu Reino, invariavelmente nos veremos em situação de guerra como soldados em um front de batalha.

Aliás, as batalhas que nos afetam, como representantes do Reino de Deus, apresentam tantos desdobramentos e abrangem tantas áreas de nossa existência que o termo batalha espiritual parece um tanto inadequado para traduzir toda a extensão de seu significado, ainda que aconteçam prioritariamente no plano espiritual.

Portanto, é impossível negar o fato de que a vida cristã é uma batalha. O problema é que, quando absolutizamos uma analogia, ela acaba deixando de cumprir o papel a que se propõe. Se olharmos para a vida como se tudo fosse uma batalha, perdemos muito de seu significado. Reduzir o relacionamento com Deus e as interações com o semelhante a estratégias de guerra, exigindo uma constante postura de alerta militar, nos levará a ignorar uma série de outros tesouros que uma vida de fé nos propõe.

Em um texto clássico, Jesus diz aos seus discípulos: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação” (Mt 26.41). Influenciado por essa perspectiva bélica, sempre entendi esse versículo como um sinal de alerta, indicando um estado de constante ameaça. Eu fazia uma imagem, como se estivéssemos à beira de um precipício, na ponta dos pés, torcendo para que Satanás não nos surpreendesse com um sopro. Ou em uma eterna troca de tiros, tentando manter o foco enquanto inúmeras distrações estivessem tentando desviar nossa atenção. Conheço muitas pessoas que respiram esses ares de tensão, fazendo da espiritualidade uma trincheira a partir da qual procuram interpretar todos os acontecimentos ao redor.

E se não for só isso? E se a vida abundante idealizada por Jesus for mais do que uma grande e interminável batalha? Creio que temos todos os motivos para pensar que sim. Temos inúmeras razões para acreditar que, apesar de tudo, Deus nos chamou para desfrutarmos do shalom idealizado por ele desde o início dos tempos, e que, mesmo em meio às intempéries da vida, ainda é possível ter paz.

Aqui está o nosso paradoxo. É a paz que nos torna capazes de vigiar, não a guerra. Na realidade, o grande contrassenso é que o propósito final da guerra é a paz. Mas, se estivermos em um ponto em que a guerra nos define, não saberemos mais como viver em paz. E quem nunca está em paz não consegue perceber o verdadeiro perigo.

Uma lição no “fundo” do mar

Deixe-me exemplificar com uma experiência pessoal. Há alguns anos, tive a grata oportunidade de nadar em uma piscina natural em alto mar nas belas águas de Maceió, AL. Não contente com a superfície e inspirado por um espírito aventureiro, quis fazer um curso rápido de mergulho para descobrir um pouco mais do fundo do mar. É bem verdade que o máximo de profundidade que minha perícia de mergulhador me permitiu atingir foi cinco metros, mas foi mais do que suficiente.

Descobri que, abaixo da superfície do mar, existe outro mundo: um universo de cores, formas, beleza e vida que silenciosamente se esconde de quem não se aventura por ali. Nos poucos momentos que durou minha experiência, tive a impressão de estar em outra realidade, onde nada do meu mundo fazia sentido.

Para começar, ali no fundo do mar (por favor, deixe-me pensar que era o fundo!), o silêncio era absoluto. Um ambiente de calmaria inigualável. Lá, não havia estresse nem alarmes. Não consegui enxergar condomínios fechados de peixes nem corais com cerca elétrica. Não havia medo; somente paz.

No entanto, como todo mergulhador de primeira viagem, meu primeiro impulso, ao ver um peixe passando em frente ao meu nariz, foi estender a mão para tocá-lo. De maneira impressionante, o peixe que inspirava calmaria reagiu de forma brusca, fazendo um movimento ligeiro e escapando por entre meus dedos. Em segundos, estava bem distante. Fiz a experiência várias vezes e, mesmo em cardumes com muitos peixes, não consegui sequer tocar em um deles. Quando voltei ao hotel, o texto de Mateus 26.41 me veio à mente.

A analogia é a seguinte: nenhum daqueles peixes estava em constante estado de alerta, pois aquilo de que desfrutavam ali era a mais pura paz. Entretanto, conheciam tão bem a realidade do mar que a mera presença de algo diferente provocava neles a reação de fuga. Perigo, na verdade, é o distúrbio da paz. Quanto mais em paz alguém está, mais alerta do perigo ficará.

Vigiai – e orai!

É por isso que os verbos estão sabiamente dispostos na Escritura Sagrada: vigiai e orai. Vigiar sem orar é paranoia. O que nos possibilita vigiar é precisamente o ato de orar. Quando oramos, estamos em paz: em contato com um universo além de nossa compreensão, transcendendo a realidade do estressante mundo em que vivemos e entrando no mundo de paz e segurança da soberania de Deus.

A oração é refúgio. É o encontro com a paz. E quando oramos sem cessar (1 Ts 5.17), experimentamos a paz de tal forma que qualquer distúrbio causará em nós a reação necessária. Vigiar e orar são dois lados de uma mesma moeda. Qualquer movimento duvidoso do pecado que tão tenazmente nos assedia nos fará correr novamente para o refúgio do Pai, isto é, se estivermos suficientemente conectados a ele.

Não é assim na guerra. No meio da batalha e dos incontáveis barulhos, é muito difícil concentrar-nos. A mente está entupida de coisas a fazer, prazos a cumprir, reuniões a frequentar, telefones a atender, programas de rádio, TV, informações múltiplas caindo em nosso cérebro como uma chuva torrencial impossível de ser retida. Vivemos em um mundo multitarefa onde fazer apenas uma coisa é considerado uma imensa perda de tempo. E nós, cristãos, ainda adicionamos a tudo isso uma maquiagem espiritual; afinal de contas, estamos correndo tanto porque “é preciso remir o tempo” ou porque estamos “no fim”, e há muito trabalho a fazer. Só depois de muito tempo, percebemos que realmente estamos fazendo muito trabalho, porém pouco que tenha relação direta com a vontade de Deus.

Falamos tanto com Deus, em uma tagarelice desesperada, que raras vezes conseguimos ouvi-lo. Estamos em guerra, estamos alertas, estamos vigiando. Até que caímos. E caímos porque nunca estivemos suficientemente em paz para perceber o perigo.

Creio que temos de buscar mais sabedoria nesses tempos em que vivemos. Talvez, mais do que em qualquer época na história da humanidade. Precisamos continuar atentos para não cair em tentação. No entanto, muito mais do que um cuidado moralista para não pecar ou uma postura paranoica frente aos movimentos do inimigo, precisamos cultivar nossa relação com o Pai, nadando em suas águas tranquilas a fim de descobrir o que é a paz. O perigo será o distúrbio da paz. Somente quando estivermos suficientemente em paz para ouvir a voz de Deus, é que poderemos perceber o que não faz parte do mundo de Deus.

Ainda ouviremos tiros ao nosso redor, pois, embora a vida não seja só guerra, a guerra continua fazendo parte dela. Mas devemos lembrar que o que nos define não é a guerra, é a paz. O que nos forma não são as orações de guerra para destronar principados, mas as orações de comunhão com o Príncipe da Paz.

Dessa forma, seremos capazes de vigiar – simplesmente porque nunca paramos de orar.

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