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O Sagrado – Uma Resposta Rabínica a “O Segredo”

Por: Nilton Bonder

O livro O Segredo já provocou a publicação de várias respostas – dentre as quais Muito Além do Segredo, de Ed Gungor (Thomas Nelson Brasil), e O Segredo de Deus, do dr. Henry Cloud (Editora Planeta do Brasil).
Uma resposta certamente bem menos divulgada no meio cristão é O Sagrado (Editora Rocco), escrita por Nilton Bonder, doutor em literatura hebraica pelo Jewish Theological Seminary de Nova York, autor de vários livros e rabino da Congregação Judaica do Brasil.
A seguir, alguns dos pensamentos expostos por Bonder em seu livro.

1. Sintoma de nossa época

Embora seja extremamente difícil definir os mitos e fantasias da própria época, nenhuma parece tão própria do tempo atual como a tentativa de construir um cosmos que consome, um universo que toma características de um enorme supermercado desenhado para suprir as pessoas não só de bens, mas de liberdade e independência. A produção espiritual mais importante do nosso tempo tem sido as religiões do indivíduo, religiões estas que procuram direcionar a pessoa a estabelecer uma relação isolada com Deus ao invés de integrá-la num contexto coletivo com raízes bem mais amplas de significado e propósito. O pior é que esse individualismo fortalece a liberdade à custa do anonimato, pois, como a pessoa tende a não assumir a identidade do país, da tribo, da família ou do grupo, ela perde o senso de significado e não sabe por que existe.

2. O perigoso vírus do interesse pessoal

Desde tempos imemoriais, o ser humano acredita na existência de algum segredo ou lei espiritual que lhe permita desfrutar de riquezas, poderes, sabedoria e sucesso e explique quais são as trajetórias vencedoras e quais as perdedoras. O grande problema de qualquer sistema de pensamento ou consciência são as lógicas dissimuladas de interesses subliminares que se fazem passar por interesses do próprio indivíduo.

É como o vírus que age no organismo. Usando um material genético semelhante, mas com interesses particulares, ele se faz passar pelo próprio corpo do indivíduo infectado, driblando todas as proteções celulares. Invadindo o sistema mais privado do organismo, o vírus passa a ter acesso ao código que defende a identidade e a integridade do mesmo e começa a controlá-lo com objetivo pernicioso, seguindo a vontade de outro interventor que se impõe. Assim também funcionam os vírus de computador.

Para a consciência humana, nada é mais perigoso do que a mensagem subliminar que encontra brechas em nossos pensamentos e mescla-se com nosso discernimento, mascarando a realidade e cegando o juízo. É o que tem acontecido com o segredo (e tantas outras teorias semelhantes): camuflando-se em uma das mais amplas leis do universo e um dos mais profundos discernimentos da realidade, na verdade traz uma sutil distorção, escondendo ainda mais o verdadeiro segredo, “o segredo do segredo”[1].

3. Balaão: a distorção do desejo

É uma história muito conhecida (Nm 22-24): Balaque, rei dos moabitas, percebe que não tem condições de resistir à nação de Israel e quer usar uma forma antiga de segredo, ou mágica, para obter seu desejo de amaldiçoar o inimigo. Balaão, o mago ou profeta, é um homem que realmente conhece o mundo espiritual. Porém, é infectado pelo mesmo vírus do desejo ou interesse próprio.

Enquanto Balaque deseja poder, Balaão está atrás de riquezas e honra.

Embora os dois se esforcem ao máximo, insistindo no objetivo com foco e intensidade, eles esbarram numa lei superior que os impede de obter o desejo. Balaão é acostumado a valer-se da mágica para conseguir o que quer, usando leis espirituais (Nm 22.6). Nada sabemos a respeito de suas outras experiências; apenas que já tinha uma reputação de sucesso e que conversava com Deus.

O objetivo do texto bíblico, claramente, é mostrar não só a soberania de Deus em não permitir que seu povo seja amaldiçoado, mas também os efeitos que um desejo dominante pode causar sobre uma pessoa mesmo que ela tenha faculdades espirituais bem desenvolvidas. Apesar das afirmações piedosas de fazer e falar somente o que o Senhor ordenar, Balaão insiste com Deus até conseguir sua “permissão” para aceitar a missão e avança mesmo depois de ter seu caminho bloqueado por um anjo, de perceber que o Senhor estava irado e de ouvir sua jumenta falar.

Como fica, então, “a lei universal de atração”? De acordo com esse relato, não funcionou nem com Balaque nem com Balaão. Na verdade, vemos outra lei de atração que não garante a obtenção de todos os nossos desejos, mas que tende a corromper tudo o que passa perto da nossa vontade, distorcendo a percepção, a compreensão e a reação de acordo com a força do nosso querer. O homem que “tem os olhos abertos” (Nm 24.3) não consegue enxergar o que sua jumenta vê; sua capacidade de ouvir Deus é prejudicada; seus poderes de sensibilidade não funcionam como antes.

Ele só escuta o que quer escutar. E, no fim, o desejo insaciável de Balaão leva-o à morte (Nm 31.8,16).

Por aí se pode ver a perspectiva bíblica da lei universal de o segredo, mostrando claramente que nem tudo o que se deseja pode ser obtido.

4. A diferença entre o “segredo” e o princípio da “bênção”

Existe uma grande diferença entre a aquisição daquilo que se deseja e a bênção bíblica. O desejo é basicamente individual, egoísta e excludente por natureza. Mesmo que, em tese, o “universo” tivesse recursos suficientes para satisfazer os desejos mais exagerados de todas as pessoas que existem, um pouco de reflexão basta para deduzir que muitos desejos dependem da exclusão de outros para serem satisfeitos. Como posso satisfazer meu desejo de ser o melhor atleta, de ocupar a mais alta posição na empresa ou de ganhar uma eleição sem, necessariamente, tirar a satisfação de outra pessoa que deseja a mesma coisa? Ainda que se tente divulgar o segredo a um grande número de pessoas, a idéia é sempre que algumas pessoas vencem porque descobriram a chave, deixando outras pessoas para trás na derrota. E, como o universo não gera as possessões materiais no vácuo, qualquer desejo satisfeito significa que outras pessoas suaram e sofreram, provavelmente com pouca compensação, para prover a casa, o carro novo ou o brinquedo eletrônico desejado.

Outro problema intrínseco ao desejo é que a satisfação não vem com a obtenção do objeto, posição ou alvo pretendido. O desejo está sempre mais preocupado com a preservação de sua potência do que com a própria experiência de usufruir da realização. Este é o custo satânico do desejo: obstruir a bênção da satisfação e da plenitude. O governo do desejo é marcado pela maldição da carência e pela dependência total do querer.

É por isso que a história de Balaão é exemplar. Para Balaão conseguir o que quer, ele precisa satisfazer o desejo de Balaque. E o desejo de Balaque é amaldiçoar Israel, porque Israel tem algo que ameaça a posição e o poder de Balaque. Para ele, a bênção de um depende da maldição do outro. Mas a lei da bênção divina funciona em outra base. A bênção origina-se de algo exterior ao homem e se consuma numa interação absoluta entre o homem e Deus. Não há intervenção possível na bênção porque ela não é relativa a um terceiro. Não há olhar ou força maligna que seja capaz de modificá-la.

Ao tentar lançar maldição sobre o povo abençoado, Balaão foi dominado pela verdadeira e superior lei de atração do universo (a lei da bênção) e teve de abençoar o abençoado.

Quando percebo que posso conseguir algo do universo utilizando apenas meu querer, elimino o potencial de um desejo originado de um estímulo externo, produzido fora de mim. Com isso, abro mão de outra fonte de quereres, essa sim, inesgotável, cuja dádiva maior não está na experiência de ter os desejos saciados, mas na qualidade de surpreendente, transcendente, imerecido.

Os presentes mais especiais da vida não são os que conquistamos, mas os que ganhamos como gentilezas, os brindes que ganhamos antes do querer, os desejos produzidos posteriormente ao ganho. São as surpresas que driblam a vontade e apresentam-se antes da aspiração e do anseio, o manjar antes do apetite.

Balaão, mesmo sem o aplicar à própria vida, definiu a verdadeira natureza da bênção quando proclamou sobre Israel: “sua prosperidade será como a semente junto às águas” (Nm 24.7). A semente tem um potencial de fazer nascer. Contudo, nada conseguirá sem a água. Conjugar potenciais internos e externos é o que constitui a bênção. Diferente do desejo que age sozinho, e cuja essência está em impor e exigir, a bênção está no casamento de vários potenciais. Esses potenciais não são desejos embora se assemelham a eles. A diferença sutil está na origem – o desejo nasce da semente que quer germinar sozinha; a bênção nasce da dádiva da água que encontra o potencial da semente e o desperta. No primeiro, o desejo pertence ao indivíduo, a um elemento independente; no segundo, é o encontro entre potenciais.

A atração não é um poder que faz acontecer o que eu quero. A atração se dá entre potenciais que se completam – tal como o masculino encontra sua função no feminino, como a carga negativa encontra atração na positiva. Atrações e repulsões nunca nascem de um único item que as impõe; pelo contrário, elas são interações que só podem ocorrer no espaço “entre” e nunca “em”.

A bênção não é excludente. O outro não diminuirá a minha bênção; ao contrário, a ampliará. A bênção não diminui quando repartida, mas surpreendentemente se reforça e se propaga. A bênção contagia e não se fragmenta. Aliás, essa é sua característica maior. Para saber se algo é um desejo atendido ou uma bênção, basta fazer o seguinte teste: se, ao ser compartilhado, ele perder valor ou intensidade, terá sido apenas fruto do desejo; se, ao contrário, ele se expandir e desenvolver-se, terá sido uma bênção.

[1] De acordo com Bonder, o que é chamado de “segredo” é enganoso e superficial. As pessoas que o possuem consideram-se sábias e entendidas e desprezam quem não o entende ou aceita. O “segredo do segredo” seria o verdadeiro segredo, oculto aos que se acham sábios, porém muito mais óbvio do que se poderia imaginar.

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