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caminho que Jesus trilhou

Guerra Espiritual no Livro de Jó

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Por: Ricardo Barbosa de Souza

Para mim, a grande guerra espiritual que enfrentamos hoje se dá dentro da própria igreja e tem a ver com o analfabetismo bíblico e teológico que tem levado muitos a naufragar nas trevas da ignorância, da superstição e do chamado neopaganismo. Os reformadores acreditavam que a grande contribuição da igreja no final da Idade Média era a de libertar os homens da cegueira da ignorância e conduzi-los, pela Palavra de Deus, à luz libertadora do evangelho de Jesus Cristo.

A história de Jó é uma história de guerra espiritual que se dá não apenas no íntimo, mas que também tem seus reflexos na teologia, nas estruturas e nas relações. É uma guerra em que o objetivo principal não é o de medir forças e ver quem tem mais poder, mas de nos transformar a fim de compreendermos com maior clareza os propósitos eternos de Deus.

O Cenário da Guerra

Os primeiros dois capítulos do livro de Jó definem o campo e os personagens deste conflito. Temos de um lado Deus, que nos é apresentado como o Senhor soberano sobre tudo o que acontece na terra e no céu. As ações dos anjos e dos homens não lhe escapam aos olhos. Walter Wink afirma que “na verdade, a fé no Israel primitivo não tinha lugar para Satanás. Somente Deus era o Senhor, e tudo o que acontecia, para o bem ou para o mal, era atribuído a Deus. “Eu mato, e eu faço viver; eu firo, e eu saro; diz o Senhor” .

Para o Velho Testamento, Deus sempre era a causa primeira e última de tudo o que acontecia no céu e na terra; ele assume total responsabilidade sobre o bem e o mal. Esse é um conceito importante que veremos na forma como Jó enfrenta seu conflito espiritual.

De outro lado, temos o próprio Satanás, que se apresenta diante de Deus junto com os “filhos de Deus”. Ele nos é apresentado como um acusador, expressão usada no Novo Testamento para definir seu papel. Ele levanta suspeitas quanto às motivações de Jó em ser tão íntegro e reto diante de Deus. Suas dúvidas colocam sob suspeita o testemunho de Deus e, conseqüentemente, as relações entre Deus e o homem. Ele não tem um poder próprio e não age independentemente de Deus. Suas ações, Deus assume como sendo suas próprias ações (de Deus) quando afirma que Satanás o havia “incitado contra ele (Jó), para o consumir sem causa” (Jó 2:3b). Satanás também reconhece isto ao dizer a Deus “estende, porém, a tua mão, toca-lhe nos ossos e na carne, e verás se não blasfema contra ti na tua face!” (Jó 2:5). Embora a maldade tenha sido proposta e executada por Satanás, ele próprio reconhece que é a mão de Deus, em última análise, a responsável pelas aflições de Jó. Satanás não é um ser autônomo, independente, com liberdade plena para agir e fazer o que lhe interessa.

Por fim temos Jó, aquele sobre quem Satanás levanta suas suspeitas e que, aos olhos de Deus, é um homem íntegro, reto, temente a Deus e que se desvia do mal. O alvo das acusações de Satanás é o homem em sua relação com Deus. Ele não duvida do que Deus afirma sobre seu servo Jó. Sua dúvida repousa sobre as motivações, as intenções secretas da devoção de Jó. Essas suspeitas não comprometem apenas as intenções de Jó, mas, sobretudo, a aliança que Deus estabelece com seu povo. A tese levantada é a de que ninguém adora e serve a Deus por nada. Por detrás de toda a retidão e integridade, o homem esconde sua verdadeira motivação que é a recompensa que espera receber de Deus. Satanás duvida de que alguém possa amar a Deus sem esperar alguma retribuição. Se as suspeitas de Satanás forem confirmadas, ele encontra a justificação para sua própria queda. O centro da guerra espiritual se dá na arena do conflito relacional e afetivo, e não na do poder.

A Estratégia de Satanás

Deus aposta no poder do amor, do relacionamento que existe por causa do afeto. Este é o poder de que ele dispõe para enfrentar a aposta que Satanás propõe. Por natureza, é um poder frágil, cuja força está em cativar o coração e obter deste uma resposta igualmente afetiva e amorosa.

A guerra espiritual, na perspectiva de Jó, não é uma disputa de poder entre duas forças que se digladiam buscando provar quem é maior e o mais forte. Antes, é um conflito entre Deus, que ama gratuita e incondicionalmente, e o acusador, que usa todos os recursos possíveis para provar a impossibilidade deste amor. O que está em jogo na aposta entre Deus e Satanás é a relação de Jó com seu Senhor.

Numa outra cena semelhante, a da tentação no deserto, o que está em jogo ali é também a mesma coisa. Quando Satanás se aproxima de Jesus para tentá-lo, a primeira pergunta é: “se és Filho de Deus, manda…” A dúvida lançada não era em relação ao poder de Jesus de transformar pedras em pães ou saltar do alto do templo e ordenar aos anjos que lhe socorressem. A dúvida era em relação à voz que ele acabara de ouvir no Jordão dizendo: “Este é o meu Filho amado em quem tenho o meu prazer”. A preocupação de Satanás não está no poder de Jesus para transformar pedras ou dar qualquer show que demonstre sua habilidade em manipular as forças cósmicas; sua preocupação está em levantar suspeitas, colocar sob dúvidas e, por fim, arruinar a relação única que o Filho tem com o Pai.

Durante toda a vida e missão de Jesus, sua luta espiritual foi preservar o vínculo amoroso, afetivo e obediente que ele tinha em relação ao Pai. Seu último suspiro, depois de toda a vergonha e humilhação do Calvário, foi mais uma vez afirmar seu amor ao Pai dizendo: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Foi esta relação de amor e afeto que venceu o pecado, que trouxe o triunfo da cruz. A cruz é o triunfo do amor sobre o poder. A opção pelo poder é uma opção maligna. É por isso que Jó recusa o caminho tão comum e popular da guerra espiritual moderna, o do dualismo, que vê o mundo dividido entre dois grandes poderes, duas grandes forças que disputam o domínio e o controle dos homens e da história.

Recentemente, foi publicado no Brasil um livro sobre batalha espiritual que define a batalha espiritual com os seguintes dizeres: “Há no mundo dois reinos em conflito, duas forças que se chocam em combate pelo destino eterno dos seres humanos, dois poderes em confronto: o poder das trevas contra o poder da luz”. Para o editor, o mundo está literalmente dividido entre duas grandes forças, uma do bem e outra do mal, e precisamos urgentemente optar por um lado, sacar as armas espirituais e partir para defender o ameaçado reino do Senhor Jesus. Jó não vê o mundo assim. Para ele, o Senhor reina.

Logo após ter sido violentamente afligido pelas catástrofes provocadas por Satanás, ele não diz: “O Senhor deu, e Satanás tomou, agora devo amarrar e reivindicar o que me foi tirado”; pelo contrário, sua afirmação revela que, mesmo tendo sido Satanás o autor de toda a desgraça que sobreveio a ele e sua família, ele continua colocando Deus no centro de todos os acontecimentos ao declarar: “o Senhor deu, o Senhor tomou, bendito seja o nome do Senhor”.

Quando abraçamos o dualismo, a guerra espiritual transforma-se numa disputa de poder; temos que provar quem é mais forte, mais competente. Entramos na arena criada pelo próprio Satanás e passamos a lutar com suas armas. Optamos pelo poder, pelo domínio e caímos na grande armadilha que ele nos preparou. Jesus, quando provocado, nunca se valeu do seu poder para se auto-afirmar perante Satanás ou mesmo o mundo. Um dos ladrões que fora crucificado com ele lhe disse: “Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também”, no entanto Jesus não precisou dar nenhuma prova do seu poder para mostrar que era de fato o Cristo de Deus, porque o seu poder fora definido na voz do Jordão.

Um dos perigos que a guerra espiritual traz é o de induzir-nos a usar as mesmas armas de Satanás, as armas do poder. O mundo não está dividido entre duas grandes forças. Por isso, como afirma C. S. Lewis, não há uma guerra espiritual, mas sim uma rebelião interna, e o rebelde encontra-se sob controle. O poder que venceu o pecado foi o poder do amor, da encarnação, da entrega, da doação. Esta é a arma da nossa guerra.

O que Satanás queria era mostrar que ninguém ama a Deus por nada, que ninguém busca e serve a Deus simplesmente porque Deus é Deus; que a integridade e retidão de Jó nada mais eram do que artifícios para conquistar os favores de Deus. É importante notar que as armas de Deus não são as mesmas de Satanás. Enquanto Satanás se vale da violência, destruição, sofrimento e dor, mostrando seu arsenal poderoso, Deus se vale da aliança feita pelo seu nome.

Esta compreensão dualista da guerra espiritual que tomou conta da igreja evangélica no Brasil e na América Latina tem causado outras conseqüências previsíveis como o surgimento da teologia da prosperidade e a ambição pelo poder político. Ambos são reflexos de uma mesma visão espiritual que coloca os crentes dentro da arena criada por Satanás onde ele mesmo é quem distribui as armas. Na luta pelo poder, seja ela qual for, Satanás será sempre o vencedor. As armas de Deus são outras, seu poder transforma a vida e a alma humana, nos livra das ambições do poder, nos torna mais submissos e obedientes a ele e sua Palavra, mais comprometidos com o seu reino e sua justiça.

As transformações em Jó

Como já vimos, o drama de Jó reflete uma aposta que Deus e Satanás fizeram em relação às motivações secretas que levavam-no a ser íntegro e reto. Deus aposta na resposta do amor; Satanás, na da retribuição como expressão do egoísmo. O sofrimento imposto a Jó é para provar de que lado ele vai ficar. Os amigos entram em cena e logo mostram que sua teologia reforça o argumento de Satanás. Para eles a lógica é simples: Deus abençoa o justo e pune o pecador, portanto, se Jó está sofrendo, é porque pecou. Sendo assim, ele deveria reconhecer seu pecado, confessá-lo, a fim de receber de volta o que lhe havia sido tirado.

Noutras palavras, Jó deveria buscar a Deus, não por causa de Deus, mas por causa dele mesmo. Ele era a razão da sua fé e o objeto do seu amor. Jó, no princípio embora adepto desta teologia da retribuição, rejeita esse argumento e reafirma sua inocência. Na sua luta espiritual, ele tem uma opção em três: reconhecer que seus amigos têm razão e que Deus é justo, o que o levaria a negar sua inocência e a buscar a Deus por causa de si mesmo; reconhecer que seus amigos têm razão e que ele é inocente, o que o levaria a negar a Deus; e reconhecer que Deus é justo e que ele é inocente, o que o levaria a negar a teologia dos amigos.

Jó opta pela última. Essa opção o leva a experimentar uma profunda transformação na sua linguagem, que Gustavo Gutiérrez chama de “Linguagem Profética e a Linguagem da contemplação”. A linguagem profética nasce da constatação que Jó teve de que há outros inocentes como ele no mundo que sofrem a opressão daqueles que ambicionam o poder. Ele começa a falar para os pobres e sofredores com a linguagem de quem conhece a dor do inocente. A linguagem da contemplação nasce da revelação de Deus como Senhor livre e soberano, cujos atos e justiça não são determinados pelo homem, mas pela gratuidade do seu amor.

Ao reconhecer a grandeza e majestade de Deus, Jó se curva e declara que agora seus olhos o vêem. O propósito da guerra espiritual na experiência de Jó não foi determinado pela sua capacidade de vencer as catástrofes nem mostrar que o poder de Deus é maior que o de Satanás. O propósito foi o de render seu coração, transformar sua teologia (uma vez que ele pensava como seus amigos) e viver um encontro com Deus que transformou sua linguagem sobre Deus.

A derrota de Satanás não foi medida pelo poder, mas pela rendição ao amor gratuito e incondicional de Deus. Penso que esta foi também a guerra espiritual vivida por Pedro quando o próprio Senhor o chamou e disse: “Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo. Eu, porém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; tu, pois, quando te converteres, fortalece os teus irmãos” (Lc. 22:31, 32). A resposta de Jesus a Satanás, o qual reclamou o desejo de peneirar a Pedro, não foi aquela clássica de nossas batalhas espirituais: “tá amarrado”. Pelo contrário, Jesus disse apenas que iria orar por ele para que sua fé não desfalecesse. Era necessário que Pedro passasse pela peneira. Sua índole era por demais impulsiva. Suas armas de guerra precisavam ser neutralizadas para que pudesse humildemente confessar seu amor ao Senhor. Tudo o que Jesus queria era uma declaração de amor, e não a arrogância do poder. Pedro foi também transformado pelo poder do amor de Deus e experimentou uma nova linguagem para falar de Deus.

A guerra espiritual e o silêncio de Deus

A luta espiritual vivida por Jó, Jesus e Pedro tem um elemento comum que é o silêncio de Deus. Parece-me que em todas elas Deus permite aquilo que Jesus afirma acerca de Pedro: deixar que Satanás o peneire. O Silêncio de Deus não é o silêncio da indiferença, mas o da oração e da intercessão. A resposta final desse silêncio é a afirmação de que, apesar do sofrimento imposto por Satanás, nosso coração continua sendo eternamente de Deus. A afirmação do amor que temos pelo Senhor é a resposta final de toda a luta espiritual. Não se trata de uma disputa de poder, de demonstrar quem é mais poderoso e domina o universo; essa tentação Jesus venceu no deserto. Deus não está preocupado em demonstrar seu domínio e soberania porque ele é de fato o Senhor absoluto e soberano, e isso nunca foi colocado em disputa; sua glória ele não divide com ninguém, nem mesmo com Satanás.

A razão da guerra espiritual é demonstrar a quem nosso coração pertence. Diante dessa finalidade, Deus se faz silencioso na espera de nossa resposta. Em algumas situações bíblicas em que Satanás impõe o sofrimento como instrumento de desmascaramento de nossas motivações mais secretas, vemos que Deus guarda o silêncio esperando nossa resposta. Foi assim com Jó, com Pedro e com o próprio Senhor. Também foi assim com Abraão quando levou seu filho Isaque para o altar do sacrifício. O papel de “acusador dos irmãos” mostra que Satanás desempenha um lugar importante no plano eterno de Deus: o de denunciar nossas máscaras e hipocrisias. É por isso que Jó, em momento algum de sua guerra espiritual, trata com Satanás, mas com Deus. Deus é seu advogado e justificador, é ele quem defende sua causa e é dele que Jó espera receber a absolvição.

Conclusão

A percepção da guerra espiritual como uma disputa pelo poder de domínio e controle do homem, do mundo e da história acabou levando a igreja evangélica a optar pelas mesmas armas de Satanás e perder o sentido mais profundo e verdadeiro da luta espiritual que é o de nos transformar, transformar nossos conceitos, valores e teologias que tentam enquadrar Deus nos esquemas malignos do poder. Nosso chamado é para subir ao Calvário, para sofrer todas as implicações do amor e do serviço, e resistir a todas as investidas malignas que tentam nos afastar do caminho para Jerusalém. A vitória espiritual é a resposta do amor incondicional e desinteressado a Deus e ao seu reino. Enquanto permanecermos íntegros nas nossas motivações e desejos; enquanto permanecermos no caminho do discipulado e da cruz; enquanto permanecermos obedientes e submissos ao Senhor e sua Palavra, permaneceremos do lado de quem é e sempre será o vencedor.

Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de “Janelas para a Vida” e “O Caminho do Coração”.

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2 respostas

  1. Simplesmente maravilhosa a explicação do Grande Conflito existente no Livro de Jó e que na verdade culmina no Grande Conflito cósmico. Na verdade esta guerra tem como palco o coração humano, que deve ser totalmente desinteressado e amar a Deus incondicionalmente, assim como ELE nos ama. Um amor genuíno, sem interesses.
    Muito obrigada, amei este artigo.

  2. Muito boa esta explicação. Me trouxe um outro entendimento, abrindo meus olhos para entender, mas ainda que é Deus quem governa sobre tudo e todos.

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